No
último dia 20, nós do Coletivo Casa Escola promovemos uma feijoada
no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo em Santa Teresa. O objetivo
desse encontro foi arrecadar recursos para que possamos melhorar o
espaço que utilizamos com as crianças.
Mesmo
tendo esse objetivo como propulsor da atividade, nós sentimos que os
resultados vão para além disso. Desde o planejamento até a
execução muitas coisas acontecem. Reuniões para pensar as
estratégias de divulgação, divisão em grupos de trabalho para a
execução das tarefas, trabalho braçal e muita alegria. Um percurso
que permite que nos conheçamos melhor. Aos poucos vai dando um gosto
bom de reconhecimento ao vermos que estamos realizando um desejo
comum.
Nesse
evento podemos avaliar que, mais do que o dinheiro arrecadado, o que
conta é a possibilidade de trabalhar em grupo, de discutir questões
e tomar decisões juntos. Um trabalho danado, mas que ao ser
realizado nos fortalece e nos aponta novas direções para
concretizar nosso projeto.
Na
feijoada contamos com a parceria de um grupo de forró que já havia
nos acolhido, na festa junina nesse mesmo ano, enchendo de boas
canções e alegria o salão e colocando o povo todo pra dançar. Mas
dessa vez aconteceu algo que não estava combinado mudando todo o tom
da festa. No meio da apresentação musical foi feita uma performance
de uma “nega maluca”. Uma mulher vestida com roupas coloridas,
pele coberta de meias e camisa preta, rosto pintado de preto e uma
peruca “black” entrou pelo salão dançando.
Pausa.
Silêncio. Murmuros. Olhares buscando um sentido para o que estava
acontecendo.
Uma
performance objetificando a mulher negra, colocando-a num lugar de
ridicularização e estereótipos. Um saculejo nervoso totalmente
desconectado do ambiente que estava sendo construído até então.
Incômodo para a maioria das pessoas.
O que
fazer quando vemos personificado diante de nós a discriminação
racial? O que fazer quando sentimos que a piada de uns só é
possível porque rebaixa outros? O que fazer quando educamos as
crianças para realmente vivenciarem a sua cultura e o respeito pelo
seu povo e diante delas se desenha uma cena “artística” onde a
matriz negra dessa mesma cultura é subjugada?
Mil
sentimentos batendo no mesmo momento e perguntas passando de um olhar
para o outro. Finalmente, rolou entre nós um olhar que dizia: É
hora de parar. Isso não pode continuar. Não aqui. Não conosco a
frente dessa situação. Nossos filhos estão vendo isso. Pessoas
estão sendo magoadas.
Poucos
minutos passaram até que uma das mães do Coletivo, Aline Valentim,
mulher negra, militante e artista se colocou em nome do grupo e de
todas as mulheres negras para finalizar aquele despropósito. Claro
que esse lugar de dizer não a uma cena dessa e nomear como racismo
suas representações não é um lugar fácil. Tem que ter um corpo
de enfrentamento, um corpo que é construído ao logo da vida com
seus encontros e afetações, um corpo que se indigna. Um corpo
alimentado de política, teoria e arte.
Racismo
não é apenas a vontade de dizimar o povo negro fisicamente. Racismo
é subjugar, é objetificar, é oprimir emocionalmente, é querer
embranquecer o povo negro. Mil sutilezas que encontramos
cotidianamente no Brasil. Então falar para uma pessoa que a atitude
dela, que era pra ser apenas uma comédia é
racismo, não é fácil.
Muitas
pessoas acham que é um exagero tomar essa posição, consideram que
o racismo acabou e que precisamos aceitar essas cenas. Afinal, é
engraçado. (Pra quem?)
A
cordialidade do povo brasileiro impede ações afirmativas contra o
racismo. Escondemos nossos incômodos para não perdermos a fama de
povo alegre com sua miscigenação bem resolvida. E isso é um
projeto de nação que está sendo desenvolvido desde o
“descobrimento” do nosso país.
Nosso
objetivo não foi destratar a banda de forró ou impossibilitar o
diálogo, apenas precisávamos marcar nossa posição. E nossa
posição é: não vamos nos calar diante das discriminações e
injustiças.
Construímos
arduamente todos os dias do nosso projeto. Cada família que entra,
cada atividade que propomos, cada dia é pensado com muita atenção
e respeito a todos os envolvidos. Entendemos que esse espaço é um
espaço de auto educação, onde cada adulto está se trabalhando
pois é a referência para cada uma das crianças.
Como
ver essa cena, abaixar a cabeça e continuar dizendo para nossos
filhos que acreditamos na potência de cada indivíduo independente
da sua cor? Como não ampliar o debate quando uma mulher negra,
militante, 70 anos, olha e fala para a “produtora” da
performance: “Tá tudo errado. Isso tá errado. Isso magoa a gente,
machuca.”
O
povo negro não precisa de tutela, pode ele mesmo falar em primeira
pessoa e dizer o que não quer mais. Não vamos aceitar o
silenciamento, o olhar de deixa disso, a cordialidade que prefere o
riso ao invés do grito.
Nega
maluca não é folclore. Nega maluca é uma invenção do homem
branco para humilhar a mulher negra, para ridicularizar. A cultura
negra tem orixás, rainhas, deusas, mães, guerreiras, divindades.
Tem música, tem tambor, tem alegria, tem samba, tem chão de terra
batida com pés descalços saudando a beleza do mundo e a
ancestralidade. A cultura negra tem lindas celebrações exaltando a
natureza. A cultura negra carrega com ela, através de muita
resistência, valores que estamos perdendo.
E
isso é o que precisamos exaltar, é para isso que precisamos bater
palmas.
Para
aqueles que acharam que é preciso ter calma fica a frase de Brecht
para que possamos refletir: "Do rio que tudo arrasta se diz que
é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem".
Lembrem
da mulher negra de 70 anos que se sentiu magoada. Tem coisa que
magoa, que machuca e que pode fazer com que pessoas passem a vida
inteira tentando negar suas origens, se distanciando de sua cultura
para embranquecer sua identidade, por não se sentirem representadas.
Queremos
ampliar o debate, queremos aprender mais com situações como essa
que nos tira da teoria e nos põe no enfrentamento. Essa situação
permitiu que pessoas convidadas pudessem expressar seu incômodo, que
grupos de conversa se formassem durante toda a festa e que nós do
Coletivo entrássemos em contato com nossas diferenças e
semelhanças. Somos um grupo diverso, com diferentes experiências e
realidades, mas temos um laço comum que nos une: acreditar que
construir um mundo diferente para as crianças está em nossos mãos
também.
Obrigada
a cada um que se posicionou durante o
encontro e que segue o debate em suas redes.
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