terça-feira, 8 de maio de 2018

RENATO NOGUERA CONVERSA COM A CASA ESCOLA


Nosso blog está desatualizado, é fato. Uma pena, pois nosso cotidiano é atravessado de acontecimentos potentes, desafios e experiências, mas nem sempre conseguimos trazer para cá. 
O desejo de compartilhar nossos aprendizados segue existindo e é alimentado por ele que retomamos a escrita por aqui. 
Mas, não por acaso, retomamos agora próximo as celebrações do 13 de maio, dia tão importante para nossas reflexões e controverso em suas interpretações.
O relato abaixo é sobre o prazer que tivemos ao receber, em 2017, o mestre Renato Noguera* em nosso espaço para uma conversa franca, (trans)formadora e mais do que nunca super atual.

O espaço, que cotidianamente é ocupado pelas crianças e suas brincadeiras, tomou nova cor para celebrar esse encontro nos possibilitando olhar para o passado e desejar um outro futuro. Panos africanos, almofadas coloridas, uma poltrona especial e flores davam as boas vindas para o professor, contador de histórias e de sonhos. Ele trouxe para o debate seu conhecimento sobre afroperspectividade, infância, realidades de outras culturas entre outros temas. Ficamos desacomodados, instigados, inspirados… Nada mais será como antes. Sua fala nos atravessou.

Renato traz para a roda seu entendimento de infância como um sentido que nos constitui. Assim como o olfato e a audição, por exemplo, a infância está em nós o tempo inteiro e não apenas passamos por ela em determinada fase da vida. Essa colocação nos possibilita estar no universo infantil a partir de um lugar de igualdade com a criança e isso nos abre mil questões e possibilidades. Qual o conceito de infância que queremos?

Infância vem do latim “Infantia - aquele que não fala”. Nessa concepção a infância é o momento da vida em que a criança não tem voz, não tem fala, logo, é necessário a presença de um adulto que garanta sua tutela, que diz por ela. Na Casa Escola não queremos esse sentido de infância. As crianças são protagonistas de sua vida, de sua história e de seus desejos. Entendemos que o adulto que deve estar próximo a elas é uma ser humano atento, que está ao seu lado para apoiá-la e motivá-la em seu percurso ímpar.
Pronto! Foi iniciada a reflexão e o olhar para nossa prática desponta em cada colocação do filósofo.

A partir da reflexão sobre o desenho de “Kirikou e a Feiticeira” ele nos apresentou a violência a partir de um outro ângulo. Afirma que somos capazes de termos atitudes violentas devido a pressões e sofrimentos que guardamos. Quanto maior o grau de frustração de uma pessoa mais chance dela despejar no outro suas mazelas. A dor gera violência. Outra reflexão aparece para nós pais, mães e educadores: nossas frustrações podem se impor como limitadores para as crianças?

O professor também nos apresentou o conceito de Skholé, uma palavra grega que significa o tempo do ócio e que deu origem a palavra escola. Skholé era o espaço, entre os gregos, da aprendizagem livre, do lugar que não era preciso produzir com fins mercadológicos, o espaço de ser sem ter que mostrar resultados. Tempo livre para ser o que se quer. A palavra escola, que tem origem em skholé, parece que trilhou rumos bem diferentes até chegar a atualidade e acreditamos que até opostos ao seu significado original. Nós da Casa Escola ficamos felizes em reconhecer nesse significado do tempo do ócio, o tempo que reconhecemos como importante para nossas práticas.

E o tempo… Tempo. Tempo. Tempo. "Exú acerta um pássaro ontem com a pedra que atira hoje"
Estamos inserido em uma única lógica temporal, a cronologia. Uma coisa depois da outra, começo, meio e fim, cronos… Mas para a filosofia existe outras possibilidades de temporalidade. A criança sabe bem disso vivendo sua intensidade no tempo Aion. Mas aprendemos isso onde? Sentimos isso como? A lógica da escola hegêmonica é a lógica do capitalismo, da produção, do resultado. A escola é cronológica, mas a criança não. Como respeitamose garantimos o tempo da criança então?
Ficamos com mais uma indagação já que na prática cotidiana e até mesmo nas formações sobre educação e infância que passamos, muitas vezes não somos apresentados a outras possibilidade de viver os tempos outros.

Renato trouxe histórias, contos, experiências, lembranças de práticas educativas de diferentes territórios e contextos culturais. A infância, a brincadeira, o papel do educador tem diferentes significados dependendo do lugar que estamos. Entendendo isso, percebemos que nós, pautamos todo nosso conhecimento em uma mesma lógica e contextualização: a eurocentricidade. O que aprendemos na escola e nos espaços culturais em sua maioria, legitima o saber e o fazer branco e europeu. A história do nosso país e do nosso povo chega a nós pelo viez e pela caneta do homem branco. Diante disse temos uma questão a ser tratada que exige que nos aprofundemos nela: nós só conhecemos um lado da história, uma maneira de educar…

Mas apesar de só conhecermos um lado da história construímos possibilidades outras. Novos olhares procuram por frestas para sair das generalizações. Frestas por onde buscamos enxergar outras lógicas, outros modos de viver. Ana Paula Venâncio, professora alfabetizadora do ISERJ, estava no encontro e também contribuiu contando um pouco de sua experiência com as crianças e a filosofia Ubuntu. A professora trabalha a partir de uma filosofia que não está no centro, trazendo para o círculo, para a roda, perguntas. Abre a escuta para inúmeras vivências infantis, tecendo saberes e fazeres que foram costurando e pintando com cores ancestrais em panos circulares, que giram misturando todas as cores, que vão ocupando os lugares das carteiras imóveis, do quadro estático. Valoriza os encontros, as conversas, as dúvidas, os saberes de cada um e de todos. As palavras aprendidas representam toda a dinâmica vivida coletivamente. Exemplo lindo e concreto de que nas frestas vamos enredando saberes outros.

E pensando em saberes outros, voltemos ao Renato que seguiu nos contando inúmeras histórias, entre elas a de que para alguns povos não faz sentido a palavra orfão. Uma criança não fica orfã porque na sua comunidade todos são responsáveis por ela e não apenas seus pais. Isso muda todo o sentido da educação. Renato possibilitou que conhecessemos outros significados para termos que já naturalizamos tanto… Suas abordagens são feitas a partir do seu olhar de griot, de herdeiro de uma cultura, da sua afroperspectividade.

Renato nos convida a dialogar e a brincar o tempo inteiro. Nos desloca. Tira a escola, o adulto, o conhecimento científico do centro da questão. Amplia nosso olhar e pensamento quando questiona os modelos tradicionais de educação pautados no eurocentrismo e na reprodução de saberes e conhecimentos tão distantes de nós.

Existe uma outra perspectiva possível… Queremos mergulhar nela.

Nós reconhecemos a necessidade de pautar as relações etnico-raciais, a infância e a potência de práticas educativas que estão buscando sair do modelo hegemônico de educação.Várias inquietações nos atravessam cotidianamente e entendemos que precisamos estar juntos, visibilizar distintos saberes e perspectivas para ampliar nossas práticas.

Renato Noguera, foi muito generoso. Nos falou de um tempo alargado e de intensidades e nos permitiu experimentá-lo com sua fala sem pressa. Um encontro que nos encharcou de referências outras, que encrespou a bibliografia e escureceu nossos saberes. Em quase quatro horas de conversa suave, com exemplos de outros povos e de sua própria vida, ele nos tocou, nos apontou caminhos e descortinou novas perguntas. Sem pressa, sem prescrição, sem julgamento e sem arrogância acadêmica, esse mestre nos guiou por um caminho diferente.

Essa roda faz parte de nossas estratégias para, juntos, construirmos uma prática pedagógica antirracista, visto que nosso desejo é empretecer nossas ideias, conhecimentos e práticas trazendo o referencial do negro em todas as áreas possíveis para estar na Casa Escola. Queremos cada vez mais conhecer, discutir e viver os valores do povo negro e viver a perspectiva africana como algo importante, apesar de invibilizada, contribuindo para ampliar nossos conhecimentos acerca da história do mundo que é eurocêntrica e naturalizada por tal fato. Desejos complexos e intensos esses, mas que seguimos buscando concretude para eles, e com certeza esse mestre, griot e pensador nos ajudou muito nesse percurso.

Nossas rodas de conversa acontecem com as crianças por perto, brincando, desenhando, conversando, contribuindo com suas fala e corpos. Nesse dia Renato veio com sua companheira, Carla Silva, e suas filhas, que lindamente ocuparam o ambiente com suas infâncias. Ao final falaram que gostaram muito e que querem voltar outras vezes. Isso reverbera em nosso desejo de potencializar um espaço onde as crianças sejam felizes.

Ficamos com o significado real do dia 13 de maio nos nossos corações e luta. O dia que negros escravizados fizeram a revolta na fazenda Bela Vista, em 1833. “Trata-se da maior rebelião escrava da província de Minas Gerais e que, no contexto das rebeliões regenciais, causou grande temor no seio da elite do sudeste escravista do Império do Brasil.” Uma informação importante que aponta para uma perspectiva centrada no povo negro e que precisamos aprender a pesquisar e aprofundar para não nos contentarmos com dados históricos únicos e considerados como a verdade.

Ficamos então com os mil referencias teóricos e afetivos que o mestre compartilhou. Tudo rodando em nossas cabeças e corpos. De mãos dadas fizemos uma grande roda,cantamos e dançamos Jongo, assim como nossos mais velhos. Momento de olhar no olho, sorrir, vibrar e desejar vida longa as nossas crianças, para que nesse espírito de comunidade constituam sua existência.

Seguimos juntos.

Modupé!

*Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório Práxis Filosófica de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia (Práxis Filosófica) da UFRRJ. Coordena o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin).





segunda-feira, 24 de julho de 2017

Qual seu projeto para uma educação antirracista?

Qual seu projeto para uma educação antirracista?

Essa pergunta iniciou nosso debate, no dia 10 de junho, na segunda Roda de Conversa promovida pela Casa Escola: “Reflexões étnico-raciais: Sobre infância e vivências em coletivo”.

Essa questão faz parte de uma reflexão importante sobre as relações étnico-raciais que já a algum tempo nos toca e mobiliza. Como não é um tema fácil, principalmente quando trabalhamos na educação infantil, buscamos ferramentas que nos auxilie nesse diálogo, e mais que isso, buscamos mudanças em nossas práticas.



Desde 2015 iniciamos um processo de diálogo sobre esse tema, após a entrada de uma família negra no coletivo e da convivência diária de uma criança preta em espaços de ocupação de maioria branca.



Atentos a isso disparamos diversos diálogos onde: discutimos os estereótipos impregnados ao povo negro (episódio da aparição de uma Nega Maluca na festa junina da CE); apontamos a necessidade de ter a representação do povo negro nos brinquedos e mundo infantil (bonecas, princesas,heroínas, livros); investimos em livros com histórias de crianças, e demais personagens, negros e com as histórias dos Orixás; fizemos uma apresentação da princesa Alafiá (com Sinara Rubia), seguida de roda de conversa onde discutimos temas diversos relacionados a negritude e sua negação no mundo branco, classe média, zona sul que estamos inseridos;participamos de atividades no Casarão dos Prazeres em parceria com o projeto Ocupa Escola; fizemos uma chamada específica para famílias negras participarem do Coletivo e outras famílias passaram a frequentar nossos encontros e realizamos a roda de conversa sobre relações etnico-raciais na educação infantil. 

 Seguimos planejando novos encontros e buscando referenciais que nos ajude a empretecer nosso conhecimento e descolonizar nosso curriculo.A roda de conversa faz parte dessa rede de estratégias para dar visibilidade a questão, a presença e a importância do povo negro no mundo atual, e especificamente, na realidade de nossas crianças. Para isso convidamos Shirley de Oliveira e Lua Costa para compor esse debate. Geisa Ferreira e Aline Valentim, mães da CE, educadoras, artistas e ativistas também trouxeram suas contribuições.

Aline Valentim iniciou com essa pergunta “faca no peito”: “Qual a sua contribuição para a prática de uma educação antirracista?!” Sim, porque precisamos nos posicionar!

A partir dessa indagação e de um texto da poderosa escritora nigeriana, Chimamanda Adichie, ela nos convida a pensar nos privilégios do povo branco e na sua insistência em falar em primeira pessoa mesmo quando o assunto não é a sua experiência. A ideia é abrir a escuta para o que o negro tem a dizer. Um exercício pouco feito nos distintos espaços que transitamos.

Geisa também traz uma pergunta:“Por que precisamos falar de relações étnico raciais?”

Precisamos porque RECONHECEMOS que há uma discriminação racial. Discriminação essa que legitima a diferença como algo negativo. Precisamos porque a representatividade do povo negro não é equanime em todos os setores da nossa sociedade.

Porque temos nossos corpos, nossos conhecimentos e nossos pensamentos COLONIZADOS. 

Existe uma desvalorização, desumanização e desqualificação, ou o não-reconhecimento simbólico das tradições, saberes e fazeres do povo afro-descendente. E nós da Casa Escola não queremos ajudar a manter esse cenário.

 Reconhecemos que construímos um projeto que vai contra a hegemonia da educação tradicional e não queremos reproduzir essa discriminação e as suas consequências em nossas práticas educativas cotidianas.

 Nessa perspectiva apresentamos os VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS NA EDUCAÇÃO INFANTIL como uma estratégia de tirar do centro o modelo de educação eurocentrica que seguimos e mostrar que existe outros pensamentos e saberes nas margens.

Azoilda Loretto da Trindade, Professora universitária, supervisora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro e ativista na luta contra o racismo, desenvolveu um trabalho construído sobre os “valores civilizatórios afro-brasileiros”. Essa ancestral afirmou que usar tal expressão é uma maneira de destacar a África, na sua diversidade. E que os africanos e africanas trazidos ou vindos para o Brasil implantaram, marcaram, instituíram aqui seus valores civilizatórios. Esses valores estão inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na música, na  literatura, na ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele e no nosso coração.

Os Valores Civilizatórios são princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem num processo histórico, social e cultural. 

Trabalhar pedagogicamente, numa perspectiva afro-brasileira, convida-nos a criar!

Apresentamos, segundo Azoilda, alguns saberes, princípio e referenciais afro que podem ser implementados em nossas práticas educativas. São eles:

  • Axé - ENERGIA VITAL

  • ORALIDADE

  • CIRCULARIDADE

  • CORPOREIDADE

  • MUSICALIDADE

  • LUDICIDADE

  • COOPERATIVIDADE

  • MEMÓRIA

  • RELIGIOSIDADE

  • ANCESTRALIDADE

(Para saber mais sobre cada um acesse: http://www.acordacultura.org.br/sites/default/files/kit/Caderno1_ModosDeVer.pdf)

Continuamos o debate com Shirley de Oliveira, Professora de História e da Educação Infantil. Shirley contribuiu ampliando nossa gama de autores e personalidades negras que são invibilizadas nos espaços educativos. Contou sua história na perspectiva de mãe de duas meninas negras que estão em contato direto com o racismo nos diferentes contextos que transitam.

Lua Costa, integrante do Coletivo Nuvem Negra, nos contou sua trajetória de militância negra e envolvimento com a educação infantil através de trabalhos desenvolvidos em escolas públicas e coletivos parentais. Jovialidade e experiência compõem sua fala e com muita firmeza e seriedade nos apontou diversos assuntos delicados e necessários de serem debatidos.

A conversa teve vários momentos e tons, compartilhamos desde histórias pessoais até dados estatísticos, externamos nossos desejos e medos e nos comprometemos em transformar nosso projeto pedagógico em um documento vivo que se transforma conforme a nossa perspectiva se amplia.

Essa roda de conversa nos desacomodou, nos apresentou novos rostos, nos trouxe perspectivas outras, questionou o lugar de classe média branca que estamos inseridos e junto com ele privilégios que o povo negro não tem. 

Gostaríamos de construir uma prática pedagógica anti-racista, de empretecer nossas ideias, conhecimentos e práticas, de trazer o referencial do negro em todas as áreas possíveis para estar na Casa Escola, de conhecer, discutir e viver os valores do povo negro e apresentar a perspectiva africana como algo importante, apesar de invibilizada, contribuindo para ampliar nossos conhecimentos acerca da história do mundo que é eurocêntrica e naturalizada por tal fato.

Esse desejo nos mobiliza para dar continuidade a conversa com outros pares e a construir um espaço educativo que é atravessado de fato pelo seus integrantes e suas histórias.

Continuamos tecendo outras atividades e diálogos porque as inquietações são muitas e as perguntas vão abrindo outras perguntas. 

Compondo essa rede de estratégias temos também o projeto "Dança Afro em Família" idealizado por Aline Valentim (depois contamos mais!) e a próxima roda de conversa com o Filósofo Renato Noguera. 

Seguimos!


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Frida Kahlo e as crianças - " Pés, para que os quero, se tenho asas para voar?"

No final de Julho fomos à exposição  "Frida  e Eu", uma mostra interativa que apresenta Frida Kahlo para crianças no Museu Histórico Nacional, na Praça XV.













As crianças chegaram aproveitando toda a imensidão do espaço externo do Museu. Correram, pularam, entraram, saíram, conversaram com os funcionários e se deliciaram no Pátio dos Canhões. Lanchamos nesse pátio e também participamos de uma brincadeira com dobraduras e cortes de papéis coloridos ao final da exposição.

 











 Na sala de exposição elas tiveram contato com a intensidade da vida e da obra da pintora mexicana. Sua vida, apesar de marcada pela dores e doenças, foi apresentada com suas cores e afetos.

 
Cada instalação permitia que as crianças entrassem em contato, através da experiência, com a história da pintora. Sua infância com poliomelite, seu acidente de bonde, sua família e  suas perdas foram colocadas ao alcance delas. Uma cama onde cada uma podia se deitar e desenhar um auto-retrato olhando para sua imagem no espelho, um baú com um esqueleto de espuma para ser montado e com as marcas do acidente sinalizadas com pequenos corações vermelhos, um jardim  com sons de pássaros para que pudessem imaginar a varanda de sua casa onde escrevia, um espelho com imãs coloridos para montar um quadro em torno da imagem refletida... pequenas particularidades da vida da pintora ali na mão de cada uma, para que pudessem conhecer através do sensível.

 

A educação sensível possibilita conhecer através das sensações, das emoções que sentimos ao olhar para uma obra, da conexão que fazemos com nossa vida cotidiana.  As crianças se interessaram muito e interagiram com a proposta de maneira deliciosa. Uma exposição que elas pegavam, criavam, desenhavam, montavam, olhavam, ouviam... Todos os sentidos sendo convocados a participarem efetivamente. Todos os sentidos sendo os condutores da informação para o corpo, alma e intelecto.
 

As crianças saíram atravessadas pela vida de uma mulher de um outro tempo e de um outro território, mas que elas se identificaram e demonstraram interesse para conhecer mais.

Na semana seguinte fizemos uma tarde com lanche mexicano, músicas da trilha sonora do filme da Frida, saias para dançarmos e livros com sua história, pinturas e fotografias. Sentimos que havia um desejo de mergulho nessa vida que foi apresentada na exposição.

Uma vida dura e densa, mas que não as assustou, não as paralisou ou pareceu longe e desinteressante. Ao contrário,se identificaram com ela, com seus bichos, suas cores vivas e desenhos de flores. Elas queriam saber detalhes do acidente, ver seus auto-retratos, ver sua casa, entender porque o bebê que ela esperava não nasceu vivo, fazer comentários sobre a beleza da Frida e a feiura do seu namorado (que rapidamente aprenderam o apelido de sapo-rã), achar engraçado o esqueleto que usa chapéu e sorri e demonstrar uma dúvida quando souberam que ela não mamou na sua mãe e sim em uma ama de leite.

Um mundo novo se abriu e elas queriam vê-lo. Viram os livros acompanhadas pela educadora que ia narrando alguns fatos e depois retornaram várias vezes, durante a tarde, sozinhas para folheá-los. Momentos de contemplação.

No dia seguinte uma criança chegou sem desfazer a sobrancelha que pintamos no dia anterior já nos sugerindo que ia ter mais história da Frida. Seguiram  vendo os livro e solicitando contorno para esse processo.

No terceiro dia, passeando pelas páginas que mostravam diversas fases de sua imagem,  surgiu um interesse em observar esses auto-retratos e a partir disso algumas crianças iniciaram uma construção dos seus auto-retratos. Pegaram papel e lápis e foram se olhar no espelho. Um processo leve para algumas e intenso para outras.
Segundo Vigotski: "Como toda vivência intensa, a vivência estética cria um
estado muito sensível para as ações posteriores e, naturalmente, nunca passa sem deixar marcas em nosso comportamento posterior."

Sendo assim, diante dessa vivência, sentimos como a arte pode nos emocionar, atravessar e nos mobilizar. Com uma mediação lúdica e interessante as crianças reconhecem os paralelos que a vida e a obra de uma artista fazem com a vida delas próprias. Frida Kahlo fala de dor, de amor, de maternidade, de finitude, de cores, de bichos, de alegria, de morte... As crianças se identificaram com sua linguagem e não tiveram medo da realidade apresentada. Acreditamos que isso se dá quando lhes é permitido fazer as perguntas que as agonizam, quando elas podem expressar suas emoções para buscar a compreensão do mundo que as cerca.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Museu do Amanhã















"Crianças alegres e felizes
Chegando encapuzados
Fofinhos todos
Pulando
Naquele espaço lindo
Brincando
Interessados curiosos
E amorosos e cuidados
Entre si
Enfim
Tínhamos nas mãos
O amanhã do museu
De hoje"




quarta-feira, 18 de maio de 2016

Aventuras no Parque

Em Maio as crianças da Casa Escola tiveram uma tarde novinha em folha para brincar com os amigos Aventureiros nos Jardins do Museu da República.  Aventureiros é um grupo de crianças entre 4 e 8 anos que se reúne algumas tardes por semana para brincar. Um coletivo que tem as queridas Carolina Figueiredo e Andrea Romero acompanhando suas aventuras.


Nós da Casa Escola, que já gostamos de uma novidade, ficamos curiosos para conhecer esse grupo e marcamos um encontro tarde dessas. Chegamos de mansinho, e, ali no parquinho, as crianças foram observando, sentindo que havia uma parceria entre as educadoras dos dois grupos e aos poucos reconhecendo o outro brincante.

Brinquedos pra brincar na areia atraíram uma aventureira, depois uma pista para carros desenhada com giz no chão ficou seduzindo quem passava por perto para se aproximar mais e brincar junto. Aos pouquinhos foram falando seus nomes, observando a movimentação dos mais velhos e se soltando.

Fomos para perto da nossa querida Tamarineira para fazer o lanche. Abrimos nossas cangas, lanches e curiosidades. "O que é isso?" "Você quer um tomatinho?" "Cada um traz seu lanche?" "Você gosta de tangerina?" "Ah, ele não gosta de fruta nenhuma..." E assim com perguntas e alegria as crianças e as educadoras foram conhecendo um pouco da dinâmica do outro grupo.

Depois do lanche começou a vontade de correr e aproveitar para se esconder na gruta com o lago que estava sem água. Apareceu um monstro incrível que vira monstro e vira gente! Uma gritaria: "monstro, monstro, monstro!" Pronto! Uma rodadinha e já começam todas a correr dele/a. Quer dizer, quase todos, os maiores querem saber é de atacar o monstro, de desafiá-lo... Mas de repente uma vozinha fala: "Maria, Maria, Maria!" e o monstro vai embora deixando no seu lugar a educadora fazendo todas darem risada com a transformação. As crianças devem ter repetido essas frases trinta vezes.
E  pulando de um degrau pra lá, subindo nas pedras pra cá, todas vão se reconhecendo na movimentação, na ocupação dos espaços e nas cumplicidades para fugir ou pegar o monstro.

Já sabem alguns nomes e se interessam por saber quem vem buscar,  por contar onde vão todos juntos tomar banho depois... Proseiam.

E o lago sem água tem uma pedra linda que eles nomearam de "sofá" e que serviu para aconchegá-los para ouvir uma história no final da tarde. Primeiro ficaram de longe ouvindo e depois se aproximaram e pediram mais histórias, reconheceram livros e contaram suas aventuras.





Um encontro potente que começou de mansinho e terminou com gostinho de quero mais.
Precisamos concretizar mais momentos como esse, aproximar os pontos dessa rede de coletivos no Rio de Janeiro e possibilitar que as crianças desbravem essa cidade muito bem acompanhadas.
Seguimos atentos ao que vem pela frente e assim nos aventuramos juntos.






quarta-feira, 4 de maio de 2016

Narrativas diárias

" É  a reflexão sobre a experiência que é formadora, não a experiência por si só."
                                                                                                                         (Antonio Novoa)

Essa frase nos leva para a necessidade de pensar em como refletir sobre a experiência.
A experiência da Casa Escola não é resumida em atividades, propostas pedagógicas e acompanhamento de resultados. Nossa experiência é a lida diária com as crianças e suas famílias, é a construção cotidiana e coletiva de um espaço físico que seja acolhedor e seguro, é o planejamento de encontros entre o coletivo, a natureza e outros corpos.

Uma experiência que está em movimento o tempo todo.
As crianças com suas dinâmicas pessoais e fases de desenvolvimento específicas suscitam estudos, perguntas e exigem dos adultos (mães e pais educadores) um olhar sensível para suas descobertas e seus interesses.
O adulto está em um processo interno de observação da criança, buscando abandonar seu olhar escolarizado de julgamento e  avaliação.  Um processo novo, recente e desafiador.

Começamos nossos encontros para estudo em 2013. Nesse período estávamos pesquisando pedagogias e práticas educativas que norteassem nosso trabalho e nos dedicamos a leituras, compartilhamentos, buscas de referências práticas dos nossos desejos.
Com o início das nossas atividades em 2014, elegemos a prática dos relatos diários como uma maneira de dar visibilidade para todos os envolvidos no processo  que acontecia cotidianamente.

Um relato que marcasse os detalhes do encontro, mas que também trouxesse os sentimentos da mãe/pai que estavam como educador do dia. Não bastava relacionar as atividades, as conversas entre as crianças, as pesquisas, as alegrias e os conflitos que elas experimentavam. O mais importante era relatar fazendo parte da vivência, deixando transbordar cada expectativa com sua luz e sua sombra.
Relatos começaram a emergir em nossas caixas de emails.  Cada um com sua cor, com sua presença específica. Alguns seguiram em silêncio.

Os relatos são fontes de aprofundamento da prática, permitem um olhada mais profunda sobre determinado assunto, sobre determinada sensação, que muitas vezes em reuniões passa longe. Os relatos tem a força de um diário, um diário que vai ser aberto, que vai ser lido por no mínimo dez olhares diferentes. O que cada um escreve pode ser tornar outra coisa, pois está diretamente ligado ao lugar de quem lê, por isso escrever é um ato de coragem. É lembrar o que sentiu e expor ao outro sua fragilidade, sua natureza.

Uma escrita de si sendo constantemente escrita e lida permite um autoconhecimento. Inúmeras vezes sentimos um esclarecimento vindo no tom que o outro escreve, um desabafo tardio, uma intolerância, um julgamento de si mesmo, uma ternura para olhar para  o outro, uma certeza de que estamos fazendo o que tem que ser feito. Falas, dúvidas, certeza, tristeza, alegria... relatos que
alimentam quem lê. Os registros deixam de ser um evento particular e se tornam experiência compartilhada.

Na Casa Escola temos muitas perspectivas diferentes. Cada pessoa tem um lugar de fala construído em cima da sua cultura, da sua história de vida, dos seus desejos e medos. A partir disso aprendemos muito exercitando a escuta, respeitando a fala e colocando novos paradigmas. Com a argumentação de que o tempo é curto, muitas vezes parar para relembrar como foi nosso dia com as crianças e compartilhar com os outros pais, pode se tornar uma tarefa a mais, um exercício árduo, uma cobrança.  Mas a importância desse fazer e refazer é inquestionável, por isso nossos relatos, registros de reuniões, fotos, textos e conversas permitem que possamos olhar para nosso percurso e avaliá-lo, não no sentido de estarmos certos ou errados, mas com o objetivo de crescermos juntos com a prática, de não estarmos fixados em alguma ideia ou teoria.

Nosso grupo é formado por interlocutores privilegiados e cada troca e sistematização permite que olhemos para nós mesmos dentro de um contexto muito rico e diverso. Fazer, registrar, refletir e re-fazer é a dinâmica de um processo coletivo de conhecimento. Nesse tecer coletivo se faz presente a importância das narrativas pessoais que rememoram atitudes e questionam modelos e práticas tão consolidadas. Passamos por algumas crises, alguns silêncios, mas mesmo o que é escolhido para não ser dito já nos diz alguma coisa.

Reflexão coletiva para repensar nossa prática, mudar algumas estratégias e consolidar parcerias com novas famílias. Iniciamos 2016 assim, pesquisando nossa própria história para elencar o que nos é caro e que não podemos deixar de mostrar. Podemos olhar para os erros e saber exatamente porque aconteceu, onde esquecemos de nos consultar, o que perdemos no caminho. Com essa olhada pra trás conseguimos organizar a casa, refinar o olhar, rever nossos objetivos.

Mas a falta de tempo segue na nossa cola e fazemos disso nossa desculpa para os silêncios. Precisamos partilhar mais. Precisamos nomear nossos sentimentos. Precisamos nos reconhecer na fala do outro.
Somos sensíveis, observadores e aproximamos o pensar do fazer a cada vez que olhamos criticamente para nossa prática.

Sigamos nesse caminho, pois para nossa experiência render frutos ela precisa acontecer sempre, ser sistematizada, visibilizada e sobretudo, ser coletiva.