domingo, 27 de setembro de 2015

NEGA MALUCA x NEGRA CONSCIENTE


No último dia 20, nós do Coletivo Casa Escola promovemos uma feijoada no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo em Santa Teresa. O objetivo desse encontro foi arrecadar recursos para que possamos melhorar o espaço que utilizamos com as crianças.
Mesmo tendo esse objetivo como propulsor da atividade, nós sentimos que os resultados vão para além disso. Desde o planejamento até a execução muitas coisas acontecem. Reuniões para pensar as estratégias de divulgação, divisão em grupos de trabalho para a execução das tarefas, trabalho braçal e muita alegria. Um percurso que permite que nos conheçamos melhor. Aos poucos vai dando um gosto bom de reconhecimento ao vermos que estamos realizando um desejo comum.

Nesse evento podemos avaliar que, mais do que o dinheiro arrecadado, o que conta é a possibilidade de trabalhar em grupo, de discutir questões e tomar decisões juntos. Um trabalho danado, mas que ao ser realizado nos fortalece e nos aponta novas direções para concretizar nosso projeto.
Na feijoada contamos com a parceria de um grupo de forró que já havia nos acolhido, na festa junina nesse mesmo ano, enchendo de boas canções e alegria o salão e colocando o povo todo pra dançar. Mas dessa vez aconteceu algo que não estava combinado mudando todo o tom da festa. No meio da apresentação musical foi feita uma performance de uma “nega maluca”. Uma mulher vestida com roupas coloridas, pele coberta de meias e camisa preta, rosto pintado de preto e uma peruca “black” entrou pelo salão dançando.

Pausa. Silêncio. Murmuros. Olhares buscando um sentido para o que estava acontecendo.

Uma performance objetificando a mulher negra, colocando-a num lugar de ridicularização e estereótipos. Um saculejo nervoso totalmente desconectado do ambiente que estava sendo construído até então. Incômodo para a maioria das pessoas.

O que fazer quando vemos personificado diante de nós a discriminação racial? O que fazer quando sentimos que a piada de uns só é possível porque rebaixa outros? O que fazer quando educamos as crianças para realmente vivenciarem a sua cultura e o respeito pelo seu povo e diante delas se desenha uma cena “artística” onde a matriz negra dessa mesma cultura é subjugada?

Mil sentimentos batendo no mesmo momento e perguntas passando de um olhar para o outro. Finalmente, rolou entre nós um olhar que dizia: É hora de parar. Isso não pode continuar. Não aqui. Não conosco a frente dessa situação. Nossos filhos estão vendo isso. Pessoas estão sendo magoadas.

Poucos minutos passaram até que uma das mães do Coletivo, Aline Valentim, mulher negra, militante e artista se colocou em nome do grupo e de todas as mulheres negras para finalizar aquele despropósito. Claro que esse lugar de dizer não a uma cena dessa e nomear como racismo suas representações não é um lugar fácil. Tem que ter um corpo de enfrentamento, um corpo que é construído ao logo da vida com seus encontros e afetações, um corpo que se indigna. Um corpo alimentado de política, teoria e arte.

Racismo não é apenas a vontade de dizimar o povo negro fisicamente. Racismo é subjugar, é objetificar, é oprimir emocionalmente, é querer embranquecer o povo negro. Mil sutilezas que encontramos cotidianamente no Brasil. Então falar para uma pessoa que a atitude dela, que era pra ser apenas uma comédia é racismo, não é fácil.
Muitas pessoas acham que é um exagero tomar essa posição, consideram que o racismo acabou e que precisamos aceitar essas cenas. Afinal, é engraçado. (Pra quem?)

A cordialidade do povo brasileiro impede ações afirmativas contra o racismo. Escondemos nossos incômodos para não perdermos a fama de povo alegre com sua miscigenação bem resolvida. E isso é um projeto de nação que está sendo desenvolvido desde o “descobrimento” do nosso país.

Nosso objetivo não foi destratar a banda de forró ou impossibilitar o diálogo, apenas precisávamos marcar nossa posição. E nossa posição é: não vamos nos calar diante das discriminações e injustiças.

Construímos arduamente todos os dias do nosso projeto. Cada família que entra, cada atividade que propomos, cada dia é pensado com muita atenção e respeito a todos os envolvidos. Entendemos que esse espaço é um espaço de auto educação, onde cada adulto está se trabalhando pois é a referência para cada uma das crianças.

Como ver essa cena, abaixar a cabeça e continuar dizendo para nossos filhos que acreditamos na potência de cada indivíduo independente da sua cor? Como não ampliar o debate quando uma mulher negra, militante, 70 anos, olha e fala para a “produtora” da performance: “Tá tudo errado. Isso tá errado. Isso magoa a gente, machuca.”

O povo negro não precisa de tutela, pode ele mesmo falar em primeira pessoa e dizer o que não quer mais. Não vamos aceitar o silenciamento, o olhar de deixa disso, a cordialidade que prefere o riso ao invés do grito.

Nega maluca não é folclore. Nega maluca é uma invenção do homem branco para humilhar a mulher negra, para ridicularizar. A cultura negra tem orixás, rainhas, deusas, mães, guerreiras, divindades. Tem música, tem tambor, tem alegria, tem samba, tem chão de terra batida com pés descalços saudando a beleza do mundo e a ancestralidade. A cultura negra tem lindas celebrações exaltando a natureza. A cultura negra carrega com ela, através de muita resistência, valores que estamos perdendo.
E isso é o que precisamos exaltar, é para isso que precisamos bater palmas.

Para aqueles que acharam que é preciso ter calma fica a frase de Brecht para que possamos refletir: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem".

Lembrem da mulher negra de 70 anos que se sentiu magoada. Tem coisa que magoa, que machuca e que pode fazer com que pessoas passem a vida inteira tentando negar suas origens, se distanciando de sua cultura para embranquecer sua identidade, por não se sentirem representadas.

Queremos ampliar o debate, queremos aprender mais com situações como essa que nos tira da teoria e nos põe no enfrentamento. Essa situação permitiu que pessoas convidadas pudessem expressar seu incômodo, que grupos de conversa se formassem durante toda a festa e que nós do Coletivo entrássemos em contato com nossas diferenças e semelhanças. Somos um grupo diverso, com diferentes experiências e realidades, mas temos um laço comum que nos une: acreditar que construir um mundo diferente para as crianças está em nossos mãos também.

Obrigada a cada um que se posicionou durante o encontro e que segue o debate em suas redes.