terça-feira, 8 de maio de 2018

RENATO NOGUERA CONVERSA COM A CASA ESCOLA


Nosso blog está desatualizado, é fato. Uma pena, pois nosso cotidiano é atravessado de acontecimentos potentes, desafios e experiências, mas nem sempre conseguimos trazer para cá. 
O desejo de compartilhar nossos aprendizados segue existindo e é alimentado por ele que retomamos a escrita por aqui. 
Mas, não por acaso, retomamos agora próximo as celebrações do 13 de maio, dia tão importante para nossas reflexões e controverso em suas interpretações.
O relato abaixo é sobre o prazer que tivemos ao receber, em 2017, o mestre Renato Noguera* em nosso espaço para uma conversa franca, (trans)formadora e mais do que nunca super atual.

O espaço, que cotidianamente é ocupado pelas crianças e suas brincadeiras, tomou nova cor para celebrar esse encontro nos possibilitando olhar para o passado e desejar um outro futuro. Panos africanos, almofadas coloridas, uma poltrona especial e flores davam as boas vindas para o professor, contador de histórias e de sonhos. Ele trouxe para o debate seu conhecimento sobre afroperspectividade, infância, realidades de outras culturas entre outros temas. Ficamos desacomodados, instigados, inspirados… Nada mais será como antes. Sua fala nos atravessou.

Renato traz para a roda seu entendimento de infância como um sentido que nos constitui. Assim como o olfato e a audição, por exemplo, a infância está em nós o tempo inteiro e não apenas passamos por ela em determinada fase da vida. Essa colocação nos possibilita estar no universo infantil a partir de um lugar de igualdade com a criança e isso nos abre mil questões e possibilidades. Qual o conceito de infância que queremos?

Infância vem do latim “Infantia - aquele que não fala”. Nessa concepção a infância é o momento da vida em que a criança não tem voz, não tem fala, logo, é necessário a presença de um adulto que garanta sua tutela, que diz por ela. Na Casa Escola não queremos esse sentido de infância. As crianças são protagonistas de sua vida, de sua história e de seus desejos. Entendemos que o adulto que deve estar próximo a elas é uma ser humano atento, que está ao seu lado para apoiá-la e motivá-la em seu percurso ímpar.
Pronto! Foi iniciada a reflexão e o olhar para nossa prática desponta em cada colocação do filósofo.

A partir da reflexão sobre o desenho de “Kirikou e a Feiticeira” ele nos apresentou a violência a partir de um outro ângulo. Afirma que somos capazes de termos atitudes violentas devido a pressões e sofrimentos que guardamos. Quanto maior o grau de frustração de uma pessoa mais chance dela despejar no outro suas mazelas. A dor gera violência. Outra reflexão aparece para nós pais, mães e educadores: nossas frustrações podem se impor como limitadores para as crianças?

O professor também nos apresentou o conceito de Skholé, uma palavra grega que significa o tempo do ócio e que deu origem a palavra escola. Skholé era o espaço, entre os gregos, da aprendizagem livre, do lugar que não era preciso produzir com fins mercadológicos, o espaço de ser sem ter que mostrar resultados. Tempo livre para ser o que se quer. A palavra escola, que tem origem em skholé, parece que trilhou rumos bem diferentes até chegar a atualidade e acreditamos que até opostos ao seu significado original. Nós da Casa Escola ficamos felizes em reconhecer nesse significado do tempo do ócio, o tempo que reconhecemos como importante para nossas práticas.

E o tempo… Tempo. Tempo. Tempo. "Exú acerta um pássaro ontem com a pedra que atira hoje"
Estamos inserido em uma única lógica temporal, a cronologia. Uma coisa depois da outra, começo, meio e fim, cronos… Mas para a filosofia existe outras possibilidades de temporalidade. A criança sabe bem disso vivendo sua intensidade no tempo Aion. Mas aprendemos isso onde? Sentimos isso como? A lógica da escola hegêmonica é a lógica do capitalismo, da produção, do resultado. A escola é cronológica, mas a criança não. Como respeitamose garantimos o tempo da criança então?
Ficamos com mais uma indagação já que na prática cotidiana e até mesmo nas formações sobre educação e infância que passamos, muitas vezes não somos apresentados a outras possibilidade de viver os tempos outros.

Renato trouxe histórias, contos, experiências, lembranças de práticas educativas de diferentes territórios e contextos culturais. A infância, a brincadeira, o papel do educador tem diferentes significados dependendo do lugar que estamos. Entendendo isso, percebemos que nós, pautamos todo nosso conhecimento em uma mesma lógica e contextualização: a eurocentricidade. O que aprendemos na escola e nos espaços culturais em sua maioria, legitima o saber e o fazer branco e europeu. A história do nosso país e do nosso povo chega a nós pelo viez e pela caneta do homem branco. Diante disse temos uma questão a ser tratada que exige que nos aprofundemos nela: nós só conhecemos um lado da história, uma maneira de educar…

Mas apesar de só conhecermos um lado da história construímos possibilidades outras. Novos olhares procuram por frestas para sair das generalizações. Frestas por onde buscamos enxergar outras lógicas, outros modos de viver. Ana Paula Venâncio, professora alfabetizadora do ISERJ, estava no encontro e também contribuiu contando um pouco de sua experiência com as crianças e a filosofia Ubuntu. A professora trabalha a partir de uma filosofia que não está no centro, trazendo para o círculo, para a roda, perguntas. Abre a escuta para inúmeras vivências infantis, tecendo saberes e fazeres que foram costurando e pintando com cores ancestrais em panos circulares, que giram misturando todas as cores, que vão ocupando os lugares das carteiras imóveis, do quadro estático. Valoriza os encontros, as conversas, as dúvidas, os saberes de cada um e de todos. As palavras aprendidas representam toda a dinâmica vivida coletivamente. Exemplo lindo e concreto de que nas frestas vamos enredando saberes outros.

E pensando em saberes outros, voltemos ao Renato que seguiu nos contando inúmeras histórias, entre elas a de que para alguns povos não faz sentido a palavra orfão. Uma criança não fica orfã porque na sua comunidade todos são responsáveis por ela e não apenas seus pais. Isso muda todo o sentido da educação. Renato possibilitou que conhecessemos outros significados para termos que já naturalizamos tanto… Suas abordagens são feitas a partir do seu olhar de griot, de herdeiro de uma cultura, da sua afroperspectividade.

Renato nos convida a dialogar e a brincar o tempo inteiro. Nos desloca. Tira a escola, o adulto, o conhecimento científico do centro da questão. Amplia nosso olhar e pensamento quando questiona os modelos tradicionais de educação pautados no eurocentrismo e na reprodução de saberes e conhecimentos tão distantes de nós.

Existe uma outra perspectiva possível… Queremos mergulhar nela.

Nós reconhecemos a necessidade de pautar as relações etnico-raciais, a infância e a potência de práticas educativas que estão buscando sair do modelo hegemônico de educação.Várias inquietações nos atravessam cotidianamente e entendemos que precisamos estar juntos, visibilizar distintos saberes e perspectivas para ampliar nossas práticas.

Renato Noguera, foi muito generoso. Nos falou de um tempo alargado e de intensidades e nos permitiu experimentá-lo com sua fala sem pressa. Um encontro que nos encharcou de referências outras, que encrespou a bibliografia e escureceu nossos saberes. Em quase quatro horas de conversa suave, com exemplos de outros povos e de sua própria vida, ele nos tocou, nos apontou caminhos e descortinou novas perguntas. Sem pressa, sem prescrição, sem julgamento e sem arrogância acadêmica, esse mestre nos guiou por um caminho diferente.

Essa roda faz parte de nossas estratégias para, juntos, construirmos uma prática pedagógica antirracista, visto que nosso desejo é empretecer nossas ideias, conhecimentos e práticas trazendo o referencial do negro em todas as áreas possíveis para estar na Casa Escola. Queremos cada vez mais conhecer, discutir e viver os valores do povo negro e viver a perspectiva africana como algo importante, apesar de invibilizada, contribuindo para ampliar nossos conhecimentos acerca da história do mundo que é eurocêntrica e naturalizada por tal fato. Desejos complexos e intensos esses, mas que seguimos buscando concretude para eles, e com certeza esse mestre, griot e pensador nos ajudou muito nesse percurso.

Nossas rodas de conversa acontecem com as crianças por perto, brincando, desenhando, conversando, contribuindo com suas fala e corpos. Nesse dia Renato veio com sua companheira, Carla Silva, e suas filhas, que lindamente ocuparam o ambiente com suas infâncias. Ao final falaram que gostaram muito e que querem voltar outras vezes. Isso reverbera em nosso desejo de potencializar um espaço onde as crianças sejam felizes.

Ficamos com o significado real do dia 13 de maio nos nossos corações e luta. O dia que negros escravizados fizeram a revolta na fazenda Bela Vista, em 1833. “Trata-se da maior rebelião escrava da província de Minas Gerais e que, no contexto das rebeliões regenciais, causou grande temor no seio da elite do sudeste escravista do Império do Brasil.” Uma informação importante que aponta para uma perspectiva centrada no povo negro e que precisamos aprender a pesquisar e aprofundar para não nos contentarmos com dados históricos únicos e considerados como a verdade.

Ficamos então com os mil referencias teóricos e afetivos que o mestre compartilhou. Tudo rodando em nossas cabeças e corpos. De mãos dadas fizemos uma grande roda,cantamos e dançamos Jongo, assim como nossos mais velhos. Momento de olhar no olho, sorrir, vibrar e desejar vida longa as nossas crianças, para que nesse espírito de comunidade constituam sua existência.

Seguimos juntos.

Modupé!

*Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório Práxis Filosófica de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia (Práxis Filosófica) da UFRRJ. Coordena o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin).