Nosso blog está desatualizado, é fato. Uma pena, pois nosso cotidiano é atravessado de acontecimentos potentes, desafios e experiências, mas nem sempre conseguimos trazer para cá.
O desejo de compartilhar nossos aprendizados segue existindo e é alimentado por ele que retomamos a escrita por aqui.
Mas, não por acaso, retomamos agora próximo as celebrações do 13 de maio, dia tão importante para nossas reflexões e controverso em suas interpretações.
O relato abaixo é sobre o prazer que tivemos ao receber, em 2017, o mestre Renato Noguera* em nosso espaço para uma conversa franca, (trans)formadora e mais do que nunca super atual.
O espaço, que cotidianamente é ocupado pelas
crianças e suas brincadeiras, tomou nova cor para celebrar esse
encontro nos possibilitando olhar para o passado e desejar um outro
futuro. Panos africanos, almofadas coloridas, uma poltrona especial e
flores davam as boas vindas para o professor, contador de histórias
e de sonhos. Ele trouxe para o debate seu conhecimento sobre
afroperspectividade, infância, realidades de outras culturas entre
outros temas. Ficamos desacomodados, instigados, inspirados… Nada
mais será como antes. Sua fala nos atravessou.
Renato
traz para a roda seu entendimento de infância como um sentido que
nos constitui. Assim como o olfato e a audição, por exemplo, a
infância está em nós o tempo inteiro e não apenas passamos por
ela em determinada fase da vida. Essa colocação nos possibilita
estar no universo infantil a partir de um lugar de igualdade com a
criança e isso nos abre mil questões e possibilidades. Qual o
conceito de infância que queremos?
Infância
vem do latim “Infantia
- aquele que não fala”. Nessa
concepção a infância é o momento da vida em que a criança não
tem voz, não tem fala, logo, é necessário a presença de um adulto
que garanta sua tutela, que diz por ela. Na Casa Escola não queremos
esse sentido de infância. As crianças são protagonistas de sua
vida, de sua história e de seus desejos. Entendemos que o adulto que
deve estar próximo a elas é uma ser humano atento, que está ao
seu lado para apoiá-la e motivá-la em seu percurso ímpar.
Pronto!
Foi iniciada a reflexão e o olhar para nossa prática desponta em
cada colocação do filósofo.
A
partir da reflexão sobre o desenho de “Kirikou
e a Feiticeira” ele
nos apresentou a violência a partir de um outro ângulo. Afirma que
somos capazes de termos atitudes violentas devido a pressões e
sofrimentos que guardamos. Quanto maior o grau de frustração de uma
pessoa mais chance dela despejar no outro suas mazelas. A dor gera
violência. Outra reflexão aparece para nós pais, mães e
educadores: nossas frustrações podem se impor como limitadores para
as crianças?
O
professor também nos apresentou o conceito de Skholé,
uma palavra grega que significa o tempo do ócio e que deu origem a
palavra escola. Skholé era o espaço, entre os gregos, da
aprendizagem livre, do lugar que não era preciso produzir com fins mercadológicos, o espaço de ser sem ter que mostrar resultados.
Tempo livre para ser o que se quer. A palavra escola, que tem origem
em skholé, parece que trilhou rumos bem diferentes até chegar a atualidade e acreditamos que
até opostos ao seu significado original. Nós da Casa Escola ficamos
felizes em reconhecer nesse significado do tempo do ócio, o tempo
que reconhecemos como importante para nossas práticas.
E
o tempo… Tempo. Tempo. Tempo. "Exú acerta um pássaro ontem
com a pedra que atira hoje"
Estamos
inserido em uma única lógica temporal, a cronologia. Uma coisa
depois da outra, começo, meio e fim, cronos… Mas para a filosofia
existe outras possibilidades de temporalidade. A criança sabe bem
disso vivendo sua intensidade no tempo Aion. Mas aprendemos isso
onde? Sentimos isso como? A lógica da escola hegêmonica é a lógica do
capitalismo, da produção, do resultado. A escola é cronológica,
mas a criança não. Como respeitamose garantimos o tempo da criança então?
Ficamos
com mais uma indagação já que na prática cotidiana e até mesmo nas formações sobre educação e infância que passamos, muitas vezes não somos apresentados a outras possibilidade de viver os tempos outros.
Renato
trouxe histórias, contos, experiências, lembranças de práticas
educativas de diferentes territórios e contextos culturais. A
infância, a brincadeira, o papel do educador tem diferentes
significados dependendo do lugar que estamos. Entendendo isso,
percebemos que nós, pautamos todo nosso conhecimento em uma mesma
lógica e contextualização: a eurocentricidade. O que aprendemos na
escola e nos espaços culturais em sua maioria, legitima o saber e o
fazer branco e europeu. A história do nosso país e do nosso povo
chega a nós pelo viez e pela caneta do homem branco. Diante disse
temos uma questão a ser tratada que exige que nos aprofundemos nela:
nós só conhecemos um lado da história, uma maneira de educar…
Mas
apesar de só conhecermos um lado da história construímos
possibilidades outras. Novos olhares procuram por frestas para sair
das generalizações. Frestas por onde buscamos enxergar outras
lógicas, outros modos de viver. Ana Paula Venâncio, professora
alfabetizadora do ISERJ, estava no encontro e também contribuiu
contando um pouco de sua experiência com as crianças e a filosofia
Ubuntu. A
professora trabalha a partir de uma filosofia que não está no
centro, trazendo para o círculo, para a roda, perguntas. Abre a
escuta para inúmeras vivências infantis, tecendo saberes e fazeres
que foram costurando e pintando com cores ancestrais em panos
circulares, que giram misturando todas as cores, que vão ocupando os
lugares das carteiras imóveis, do quadro estático. Valoriza os
encontros, as conversas, as dúvidas, os saberes de cada um e de
todos. As palavras aprendidas representam toda a dinâmica vivida
coletivamente. Exemplo lindo e concreto de que nas frestas vamos
enredando saberes outros.
E
pensando em saberes outros, voltemos ao Renato que seguiu nos
contando inúmeras histórias, entre elas a de que para alguns povos
não faz sentido a palavra orfão. Uma criança não fica orfã
porque na sua comunidade todos são responsáveis por ela e não
apenas seus pais. Isso muda todo o sentido da educação. Renato
possibilitou que conhecessemos outros significados para termos que já
naturalizamos tanto… Suas abordagens são feitas a partir do seu
olhar de griot, de herdeiro de uma cultura, da sua
afroperspectividade.
Renato
nos convida a dialogar e a brincar o tempo inteiro. Nos desloca. Tira
a escola, o adulto, o conhecimento científico do centro da questão.
Amplia nosso olhar e pensamento quando questiona os modelos
tradicionais de educação pautados no eurocentrismo e na reprodução
de saberes e conhecimentos tão distantes de nós.
Existe
uma outra perspectiva possível… Queremos mergulhar nela.
Nós
reconhecemos a necessidade de pautar as relações etnico-raciais, a
infância e a potência de práticas educativas que estão buscando
sair do modelo hegemônico de educação.Várias inquietações nos
atravessam cotidianamente e entendemos que precisamos estar juntos,
visibilizar distintos saberes e perspectivas para ampliar nossas
práticas.
Renato
Noguera, foi muito generoso. Nos falou de um tempo alargado e de
intensidades e nos permitiu experimentá-lo com sua fala sem pressa.
Um encontro que nos encharcou de referências outras, que encrespou
a bibliografia e escureceu nossos saberes. Em quase quatro horas de
conversa suave, com exemplos de outros povos e de sua própria vida,
ele nos tocou, nos apontou caminhos e descortinou novas perguntas.
Sem pressa, sem prescrição, sem julgamento e sem arrogância
acadêmica, esse mestre nos guiou por um caminho diferente.
Essa
roda faz parte de nossas estratégias para, juntos, construirmos uma
prática pedagógica antirracista, visto que nosso desejo é
empretecer nossas ideias, conhecimentos e práticas trazendo o
referencial do negro em todas as áreas possíveis para estar na Casa
Escola. Queremos cada vez mais conhecer, discutir e viver os valores
do povo negro e viver a
perspectiva africana como algo importante, apesar de invibilizada,
contribuindo para ampliar nossos conhecimentos acerca da história do
mundo que é eurocêntrica e naturalizada por tal fato. Desejos
complexos e intensos esses, mas que seguimos buscando concretude para
eles, e com certeza esse mestre, griot e pensador nos
ajudou muito nesse percurso.
Nossas
rodas de conversa acontecem com as crianças por perto, brincando,
desenhando, conversando, contribuindo com suas fala e corpos. Nesse
dia Renato veio com sua companheira, Carla Silva, e suas filhas, que lindamente
ocuparam o ambiente com suas infâncias. Ao final falaram que
gostaram muito e que querem voltar outras vezes. Isso reverbera em
nosso desejo de potencializar um espaço onde as crianças sejam
felizes.
Ficamos
com o significado real do dia 13 de maio nos nossos corações e
luta. O dia que negros escravizados fizeram a revolta na fazenda Bela
Vista, em 1833. “Trata-se
da maior rebelião escrava da província de Minas Gerais e que, no
contexto das rebeliões regenciais, causou grande temor no seio da
elite do sudeste escravista do Império do Brasil.” Uma informação
importante que aponta para uma perspectiva centrada no povo negro e
que precisamos aprender a pesquisar e aprofundar para não nos
contentarmos com dados históricos únicos e considerados como a
verdade.
Ficamos
então com os mil referencias teóricos e afetivos que o mestre
compartilhou.
Tudo rodando em nossas cabeças e corpos. De mãos dadas fizemos uma
grande roda,cantamos e dançamos Jongo, assim como nossos mais
velhos. Momento de olhar no olho, sorrir, vibrar e desejar vida longa
as nossas crianças, para que nesse espírito de comunidade
constituam sua existência.
Seguimos juntos.
Modupé!
*Professor
de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas
(Leafro) e do Laboratório Práxis Filosófica de Análise e Produção
de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia
(Práxis Filosófica) da UFRRJ. Coordena o Grupo de Pesquisa
Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin).